A hermenêutica como fonte inesgotável de Justiça
Eudes Quintino de
Oliveira Júnior
- sexta-feira, 22/2/2013
A 3ª vara da Fazenda Pública do
Distrito Federal concedeu 180 dias em licença-maternidade, sem prejuízo da
remuneração convencionada, a uma servidora pública para amamentar o filho
gerado por sua companheira. A pretensão foi concedida porque a mãe biológica
trabalha como autônoma e não tem como amamentar a criança. Na antecipação de
tutela, o juiz de Direito Marco Antonio da Silva Lemos, com privilegiada visão
jurídica, declarou que "no caso, existe inquestionável periculum in
mora, relativamente às necessidades do recém-nascido, com vistas à
preservação de sua saúde e mesmo de sua própria vida. Esses valores devem ser
preservados, por imperativo de justiça e de efetividade da ordem jurídica, em
sendo o caso até mesmo de ofício".
Nesta mesma linha de concessão
judicial, o Juizado Especial Federal de Campinas, deferiu a um pai detentor da
guarda do filho o direito de manter-se afastado de seu trabalho pelo prazo de
120 dias, com a faculdade de ampliá-lo para 180 dias, conforme acordo ou
convenção coletiva, nos mesmos moldes conferidos à gestante do sexo feminino.
O Direito, pela sua própria
estruturação interpretativa, revela-se cada vez mais como um instrumento
voltado para atender as necessidades do homem. Vale-se da lei, que estabelece
os parâmetros permissivos e proibitivos, porém, não se prende a ela de forma
servil e sim, com a autonomia que lhe é peculiar, alça voo em busca de uma
verdadeira integração entre a norma e o fato perquirido, avizinhando-se da
realidade pretendida. Pode-se até dizer que a lei é uma ficção, enquanto sua
aplicação na medida certa depende unicamente da forma pela qual será
interpretada.
Diz-se, e com muita razão, que o
Direito vem da mesma linha genética da Filosofia. Nesta o homem, pela sua
sabedoria e experiência, aponta os princípios éticos e sociais que devem reger
a vida em comunidade. Naquele é a articulação de todas as condutas humanas
catalogadas em um regramento tendo como base as recomendações filosóficas.
A lei é um instrumento social de
enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser
observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social
harmônico. Pode até ser considerada hostil, mas é necessária para que o homem
possa viver numa sociedade adequadamente ordenada. Porém, apesar de trazer uma
regra mandamental, vem despojada de sentimento. A lei é ordem e uma boa lei é
uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao
intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária
dose de bom senso. É um bólido que deve ser teleguiado por técnicos que tenham
conhecimento de sua potencialidade: se não for feito o ajustamento do alvo, o
impacto em local não apropriado pode ser desastroso.
Daí surge a necessidade de se fazer a
interpretação hermenêutica. Se o operador do direito terminar a leitura do
texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma
operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a
elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia,
pereat mundus. Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de
conteúdo, como pretendia Justiniano com seu Corpus Juris. Se, porém,
contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a
riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que até mesmo
originariamente não estavam contidas na mens legis. E a ciência
hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até
ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. "Quando,
argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é
compreender outra interpretação, (a fixada na norma), afirmamos a existência de
dois atos: um que dá a norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo".
A lei vem expressa por palavras, nem
sempre correspondendo à real intenção do legislador. "A palavra, já
advertia Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de
aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre
margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser
entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza
exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias
idéias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples
apreciação literal do texto".
No caso ora comentado, nenhuma voz
será discordante no sentido de que a providência judicial atendeu o propósito
da lei, que é o de "assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
Pode parecer até uma situação que
foge da regra comum, pois se trata de um relacionamento homossexual, em que a
mãe biológica deixou de amamentar a criança em razão de seu trabalho e a
requerente, como companheira, adquiriu a legitimidade e o credenciamento para
postular em juízo o direito de amamentar por substituição. Ora, se a Lei Maior
confere à gestante o direito à licença com duração de cento e vinte dias, sem
prejuízo do emprego e do salário, tal direito é transferido à companheira que
reúne condições para tanto, em razão também do que preconiza o princípio da
isonomia.
Na realidade, a lei lança seu olhar
para a tutela e proteção da criança, principalmente quando se tratar de recém
nascido, que exige cuidados especiais e a constante presença dos pais. Não é
uma atividade que pode ser exercida por qualquer pessoa porque compreende,
antes de qualquer relação, a consanguinidade ou o afeto. Melhor, portanto,
outorgar a responsabilidade para quem mantém um relacionamento com a criança.
Assim, na realidade, a lei mira o
infante e estabelece condições para sua proteção, enquanto que o cuidador
exerce uma função delegada de tutela. Mas, para se chegar a tal conclusão,
faz-se necessário o exercício hermenêutico para buscar a finalidade social da
lei. Penetra-se no conteúdo da norma e a direciona para os objetivos
pretendidos. Com muita razão, Reale ressaltou que "interpretar uma lei
importa, previamente, em compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim
de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos.
Somente assim ela é aplicável a todos os casos que correspondam àqueles
objetivos".
__________
1Processo
2013011006953-4.
3Ferraz
Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo : Atlas, 2006, p. 72.
4Maximiliano,
Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.
29.
6Constituição
Federal, artigo 7º, XVIII.
7Reale, Miguel.
Lições preliminares de direito. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 289.
__________
* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de
Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em
Ciências da Saúde e é reitor da Unorp.
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